Wednesday 5 February 2014

A Menina dos Óculos no País dos Cheiros #1

Nunca me considerei uma pessoa de olfacto apurado. De facto, conseguir sequer sentir os cheiros (a menos que se trate de perfumes, ou sejam aromas muito fortes) costuma ser complicado para mim. Esta semana estava a fazer uns cinnamon swirl rolls e a coisa ia correndo mal, porque só faltava aquilo pegar fogo, que eu estava no quarto do lado e não senti cheiro nenhum - para terem noção da nulidade que é o meu nariz. No entanto, há cheiros que nem o meu nariz conseguiu ignorar ao longo do tempo. E  por isso, o surgimento desta nova rubrica no blogue, "A Menina dos Óculos no País dos Cheiros", que se propõe ser uma viagem ao longo dos aromas que até o meu nariz (quase) inútil conseguiu distinguir ao longo da minha vida.

Capítulo I
A Aldeia das Merendas

Era pequena, tanto em tamanho como em idade, e tinha acabado de chegar a este novo colégio, que seria o mais próximo que eu viria a ter de um jardim de infância (já vos falei dele aqui). A educadora era uma bruxa má - qualquer semelhança com a Rainha de Copas não é mera coincidência - e eu, não habituada a ter tanta criança à minha volta, estava perdida no meio da confusão. Sentia que tinha sido atirado para o meio da arena, e que todos não passavam de leões a olharem-me de forma estranha. 

Cheirava a cola e tintas - o cheiro era familiar e eu gostava de trabalhos manuais, por isso, aos poucos comecei a ambientar-me. O primeiro a aproximar-se de mim foi um menino, cujo nome não me lembro, mas pelo nível de loucura (gosto mais de lhe chamar "criatividade"), que viria a descobrir se equiparava ao meu, poderia bem ser o Chapeleiro Louco. 

As meninas eram praticamente todas o oposto de mim, brincavam com bonecas, aos "médicos" e às "casinhas"e ficavam-se por aí mesmo. Lembro-me da minha inimiga-mor, que se chamava Rita dos Caracóis. De facto, tinha o cabelo encaracolado e usava sempre dois "pitotos", um de cada lado da cabeça. Para minha desgraça, era muito maior que eu (o triplo) e adorava infernizar-me a vida, porque eu era diferente e não tinha grande vontade de brincar com o Grupinho da Rita. Havia também o Diogo, o meu outro rival, que era o Queixinhas da sala e usava sempre meias brancas com riscas azuis no topo até ao joelho, e calções vincados, com um pólo a completar o conjunto (só alternava a cor). 

Eu e o Chapeleiro Louco ignorávamos todos, e vivíamos no nosso mundinho à parte, passávamos horas nas colagens, nos puzzles, na biblioteca, ou a jogar futebol em cima da mesa das colagens, com quatro latas de lápis de cera a marcar duas balizas de cada lado da mesa, e com um papel usado que tinha sobrado de alguma colagem, a servir de bola (o que nos valeu vários castigos da Rainha de Copas, que não achava graça nenhuma a estas brincadeiras). 

Depois das brincadeiras, rapidamente chegava a hora da merenda, e aí começava o meu pesadelo. Eu era aquele tipo de criança que nunca tinha fome (para mal da minha mãe, que se debatia para que eu comesse duas bolachas). Em casa, sempre que me cheirava a comida, tinha vontade de chorar, porque já sabia que hora da refeição era sinónimo de me tentarem empanturrar, ou de ficar horas sentada na mesa "até comer tudo o que tinha no prato". No colégio, a hora da merenda era ainda pior. Todas as crianças levavam uma lancheira a abarrotar de comida. Os cheiros por si só aterrorizavam-me. Era o cheiro forte da banana (que eu detestava), era o cheiro do chouriço no meio do pão, era o cheiro do iogurte, ou da tangerina que esguichava sumo para todos os lados. Todos os cheiros misturados faziam-me tremer das pernas. O Chapeleiro Louco ainda se oferecia para me ajudar a comer o conteúdo da minha lancheira para que não ficasse de castigo, mas a Rainha de Copas não o permitia, a malvada. Acabava por dar uma trinca no meu pão de leite e beber um gole do meu leite achocolatado, e mais que isso deixava-me, inexplicavelmente, com vómitos. Como devem calcular, a Rainha má não deixava isso passar e obrigava-me a ficar de castigo dentro da sala e a perder o recreio, dia após dia. O Chapeleiro Louco sentava-se sempre ao meu lado, em silêncio, até que a Rainha o obrigava a sair da sala para brincar. Ele ia, cabisbaixo, com a passada pesada de quem não queria abandonar a sua Menina dos Óculos. 

No final do colégio, despedi-me dos cheiros (e castigos) na hora da merenda, do cheiro dos corredores da escola, do cheiro da nossa sala. Despedi-me também do Chapeleiro Louco. Tenho saudades dele.



Beijinhos e esperem pelos próximos capítulos,

A Menina dos Óculos

No comments:

Post a Comment

Leave a bubbly comment!